Tuesday, May 30, 2006

BREVE ANUNCIAÇÃO






Um corpo é longo.
Félix de Athayde

And if I sing you are my voice.
/ E se eu cantar, serás minha voz.
e. e. cummings


Um quarto à meia-luz.

Ele:

Sempre estarás envolvida em silêncio.
Sempre terás essa aura límpida
e esse mistério,
um olhar indecifrável sobre tudo,
e uma vaga contemplação à tua volta.

Ela:

Teu dorso infinitamente cálido e brando,
teu corpo esguio e lânguido,
suaves tremores a mover as pálpebras,
teu longo arco lançando flechas,
pés estirados sobre a relva,
minhas mãos vazias de tuas horas largas,
fome e sede habitadas,
calma de sonhos antigos,
toda vastidão permitida e clara.

Ele:

Te amo antes de saber que te amava.
O invisível tece a teia em silêncio
e nos prende com seus tentáculos de fera.
Te amava antes de descobrir-te,
pois, para amar-te, bastava ser
a absoluta falta que preenches.
Teu olhar transformado em palavra,
voz amada e inesperada,
abrindo os sentidos da fala.

Ela:

Me inquietas e te aflijo.
Busco todas as formas de fazer-te meu e já o és.
Ao te ver, me senti encontrando a minha alma.
Teus olhos repousam nos meus
e tua boca dilata os ouvidos,
fazendo-me atenta ao que dizes.
Deixa que escureça novamente o teu olhar
e o que vens buscando se instale sem que percebas.

Ele:

O que somos, há muito existe,
e temos apenas de redescobri-lo.
Despe teu rosto, teu dorso,
teu colo, tuas mãos frágeis
em volta do meu corpo,
Te avizinha e faz da hora o teu tempo,
em que nada te prende ou te faz demorar.

Ela:

Sei o que me basta e é novo.
Tudo recomeça.
Tua voz rompe a calidez do instante,
e me ouço falando sem saber por que o digo.

Ele:

Meu contínuo murmúrio, minhas preces.
Não te pressinto, nem te aguardo.
Sou mais antigo em tua mente,
pois habitamos a anterioridade de tudo.
Somos póstumos antes de envelhecermos.
Me acolhe em teus braços,
porque sou quem tu queres.

Ela:

Te busquei por toda uma vida
sem saber quem eu queria.
Te quero e, ao mesmo tempo,
não me pertences.
Minha dor está em jamais tocar a eternidade.
Me demoro em tuas horas e não me atinjo.

Ele:

Tua serenidade me assusta.
Serás sempre a virgem acalentada,
para quem todas as orações são feitas,
e tua perfeição nunca se esgota.
Meu desejo não é possuir-te apenas,
mas fazer-te parte de mim antes de ter-te,
como se ocupasses um espaço anterior ao meu desejo.
Sinto que me queres, sem reserva ou medo,
mas a sedução usa caminhos obscuros que desconhecemos.
Quando vejo, já fomos enlaçados um pelo querer do outro,
e nos lançamos na tenebrosa senda sem volta,
na eleição do outro pelo desejo de si mesmo.

Ela:

Quando me pergunto quem és,
é para ter-te que te seduzo.
Por que haveria de me dar senão puder te possuir?
Sei que me desejas, mas minha vontade não é mais sutil.
Dissimulo para que me tomes e assim te entregues a mim.
Sou soberana do teu prazer,
a única para quem a sedução foi feita,
e todas as armas que empregas te falham.

Ele:

Para que me seduzes?

Ela:

Para que me seduzas.
Quero que faças o que eu faria em teu lugar.

Ele:

Para que me queres?

Ela:

Para servir-te e para que me sirvas.
A solidão é a mina do desejo.
O que passou ainda arde em memória,
e não te deixa esquecer.
Te completo para que me completes.
E para isso terei de ser inalcançável.

Ele:

Mas quanto mais te afastas mais tenho medo de te perder.

Ela:

Não me afasto tanto que não eu possa voltar.
Mas, se eu não me afastar, acreditarás que me tens,
e não posso te dar esta certeza, senão me desprezarás.

Ele:

Jamais te desprezaria.

Ela:

Dizes isso agora, pois não tens certeza de me ter.
Se te dou esta certeza, te perderei para sempre.
A paixão se alimenta da dúvida e da ausência.
Tudo o que é permanente fenece.

Ele:

Não morrerás para mim.

Ela:

A única forma de me manter viva é não estar contigo,
senão quando não esperas.

Ele:

Mas me tens quando queres.
Por que não posso ter-te também?

Ela:

Me tens quando queres.
Mas te faço esperar um pouco mais para atiçar teu desejo.
Tua sedução tem de te consumir para se tornar absoluta.
Nunca te darei certeza.
Se te der, morrerei para ti.

Ele:

Me queres teu?

Ela:

Sim, porque já sou tua, mesmo sem saber.
Sei que atravessarias o mundo por mim.
Mas já fiz isso, sem me pedires.
Para que fosses meu, precisei atrair-te.
Alcancei-te antes que me visses,
mas jamais te confessaria meu desapego.
Por ti, cruzaria o deserto a pé.
O que buscas é o oásis, que sou eu.
Para mim, és o deserto em profunda mutação e permanência.
Mas jamais te darei as respostas que buscas,
mesmo sendo quem sempre busquei,
antes mesmo de saber que existias.
Te mantenho em dúvida para que tua paixão sobreviva.
A única certeza que quero enquanto viver.

Ele:

Meu olhar arde e percebe a chama em teu olhar.
Da mesma forma como me olhas, eu te desejo.
E teu desejo flameja.
Me deixo consumir em teus olhos
para que queimes em meu calor.
Meu corpo te abrasa e ardo para ter-te.

Ela:

Terás o fogo de mil velas para acender teu desejo,
e mil luzes te consumirão sob um céu de betume.
Falo do meu desejo e, em silêncio, me respondes.
Tuas mãos são as mais ágeis e as mais amadas.

Ele:

Toca-me e prende-me.
Não me deixes desviar ou me afastar de ti.
Tudo o que quero é que me tenhas
no impossível abismo de forças e frêmitos.
Não me abandones na solidão dilacerada de meu próprio ser.
Fica comigo, mesmo quando me sinto só.

Ela:

Jamais te abandono, mesmo brincando com teu desejo.
Quero-te ainda mais, porque vivo apenas para que me queiras.
Desde menina, quis sentir-me desejada.
Queria que me vissem inteira.
A bela do jardim.
Todo desejo sobre as pálpebras,
os olhos a faiscar a minha fúria.
Como aceitar a minha própria tentação?
Não entendia por que me queriam.
Não sabia me deixar possuir,
nem possuir quem eu mais desejava.
Como fazer-me fêmea sem parecer vulgar.
Desejar-te do mesmo modo como me desejas,
Tão direto como a tua ereção fulminante.
Aceitar a tua excitação como a que se levanta em mim,
um invisível membro para penetrar-te também.
E me fartar como num repasto,
não mais o alimento apenas, mas o glutão.
Minha fome trespassada e vencida.
Tu, meu espólio.
Eu, saciada e plena.
Ao aceitar teu desejo, aprendi a gozar o estupro.
Consinto que me tomes, me arrebates,
porque és quem eu quero.
Mesmo preferindo somente o carinho.
Torturo-te, negando-me a ti.
Mas, ao final, quero que me tenhas com espasmo e vontade,
a mesma que tenho de ter-te.
Até escolher-te, o que fiz?
Observei atentamente todos os homens e,
volúvel como as estações, mudei as minhas preferências,
até descobrir o que eu queria, quem eu queria comigo,
alguém que me dominasse, mas que, antes, se deixasse dominar,
alguém que, mais sábio que eu, me fizesse crer ser eu a dona,
a senhora, a rainha de todos os seus prazeres,
apenas para chegar ao meu ouvido e me dizer:
– Aquieta-te. Sou teu.
Meu deleite está em seduzir, até descobrir-me seduzida,
quando descubro que não possuo a chave para tua porta,
mas que tens a minha.
Me dou por vencida, tendo vencido antes, porque te fazes meu.
Mas, até que isso ocorra, percorri todos os olhares,
até escolher-te para seduzir.
Não me importa quantos se deixem seduzir por mim.
Nenhum deles valerá um instante que passo contigo,
que desejo mais do que a mim.
Os homens são presas fáceis,
tolos encarcerados em seu sofrimento de macho.
Assim, quero o mais forte,
aquele que me dê o maior prazer ao me seduzir.
Quero quem atenda ao seu desejo com nobreza,
mas não se debata por me querer,
e saiba vencer-me com a paciência de um monge
e a astúcia de um guerreiro.
Aquele que realmente me quiser, será meu.

Ele:

Eu não precisaria te amar.
Qualquer uma que eu amasse possuiria o mesmo sentido.
Mas, não.
Eu precisava te amar e não entender.
Para duvidar de mim e contar os dias a partir de ti.
Sou novo agora.
Precisava te amar para me conhecer.

Ela:

Te sei, lábios e mãos.
Tudo que sinto é teu.
Teria o teu sono
(esfinge do meu segredo).
Teria tua fala muda,
teu verbo raso,
teu olhar casto e príncipe.
Teria tua boca e língua,
corpo cravejado e santo.
Querer-te faz parte de noite abissal e plúmbea.
Mãos nodosas e toques frescos.
Querer-te nada tem de secreto.
Tem de vasto, voraz.

Ele:

Eis o que: não és senão minha imaginação.
Te vejo como quero.
Me mostro como não sei que sou.
Se soubesse o que faço, eu não faria.
Se soubesses o que és para mim, certamente não serias.
Somos quem não sabemos e mentimos para sermos outros.

Ela:

Só me interessa agradar-te para que me tornes tua.
Assim, possuída, terei posse sobre ti.
Não me roubas o desejo.
Não te desejo para ter-te,
apenas para não te ter,
pois, ao abrir mão de ti,
me pertences mais.

Ele:

Não sei se me pertenço quando te amo.
Amar-te foge de mim.
Me vejo teu sem saber como ser outro.
Sinto-me preso ao teu desejo para que ele seja meu.
O que me dás é tudo o que quero para mim.
Se me deixas, não me reconheço.

Ela:

Querer-te está além de tudo, mas te liberto do meu amor.
Por isso, não és meu, pois pertences somente a ti mesmo.

Ele:

Que liberdade me dás,
quando o amor aliena o que é meu em ti?

Ela:

A liberdade de amar o que amas.
Meu coração se engrandece no teu.
Tudo em mim se transforma por tua causa.
O que sou se reflete sobre ti como um espelho,
e posso ver-me e admirar-me no que és.
Nada teu é maior do que eu mesma.
Nada meu se sobrepõe a ti.

Ele:

Se não és minha e não sou teu, o que somos?
Pertencemo-nos sem nos pertencer?

Ela:

Pertencemo-nos sem sermos um do outro.
O que é ser do outro, senão se dar unicamente
pela mesma razão que nos torna livres?
Me pertences?
Somente enquanto eu te pertencer.

Ele:

Ao te pertencer, deixo de estar comigo.
Minha doação deixa-me ver só a ti.
Tu és tudo o que vejo.
Sou o que vês.
E, ao mesmo tempo, não me vês,
porque me transmuto no que és.

Ela:

Transformamo-nos em nós mesmos.
Um começa no outro.
Um corpo no outro corpo.
Uma voz na outra voz.
Um olhar no outro olhar.
Misturamo-nos à sombra,
e nos escondemos de nosso reflexo.
Quem somos, esquecemos.
Tornamo-nos outros para lembrar quem fomos.

Ele:

Quem eu sou, eu não sei.
Sei apenas o que sou para ti.

Ela:

Quem somos, não sabemos.
Sou quem me faço para estar contigo.

Ele:

Minhas mãos tocam as tuas
espalmadas sobre as minhas.
Sinto-as nas pontas dos meus dedos,
a correr sobre tua pele imensa.
Tens um mar sobre a pele.
Nunca me canso de navegá-lo.

Ela:

Meus mares não têm fim.

Ele:

Por isso jamais termino de navegá-los.

Ela:

Quanto mais navegas,
mais longe desejarás ir.
Este é um caminho sem volta.
Nunca serás o mesmo.
Nem eu, que já esqueci quem eu era
antes de ti.

Ele:

Éramos sós.
E por isso não nos víamos.
O que vejo hoje é a parte que guardas de mim.

Ela:

Guardo de ti o que me deste.
Nada te tomei sem teu consentimento.
Serás sempre meu espectro,
que nunca alcanço.

Ele:

Tenho teus olhos a me mirar,
tenho as palavras de tua boca,
tenho tuas mãos e o que elas contêm,
teus passos em minha direção.
Tenho também a tua ausência
e, quando não estás,
tudo isso permanece comigo.

Ela:

Tua ausência é um pensamento longo.
Pensar em ti à distância
preenche um indescritível vazio.

Ele:

Te vejo em toda a parte,
a qualquer hora.

Ela:

Vemo-nos, porque não nos deixamos.

Ele:

Se não me afasto,
e não te afastas, nós nos separamos?
Meu pensamento está em ti todo o tempo.
A falta que fazes preenche-se com tuas lembranças.

Ela:

Mantenho-me junto a ti
para que não te sintas só.
Se te deixo, permaneço perto de ti.
Nunca quero me afastar em demasia.

Ele:

Se retorno, é para reencontrar-te.
Não a mulher que deixei,
mas a que reencontro.
Sempre encontro-te pela primeira vez.
Também vês assim?

Ela:

És sempre novo para mim.
Enquanto te amar,
nada em ti se perde ou envelhece.

Ele:

Quando te amo, sou eu mesmo.
Nunca me conheci como me conheço agora.

Ela:

A ausência é teu único tormento.
Teu braço não me alcança,
mesmo quando estou diante de ti.
Tua solidão nunca acaba.
Eu te acompanho, mas te sentes só.

Ele:

Jamais soube como ser teu.
Te quero, mas não me dou.
Por onde te busco, não estás.
O que quero, não conheço.

Ela:

Dar-se tem a ver com gostar de si mesmo.
Goste de ti, mesmo aos poucos.
Do teu traço, teu perfil, teu contorno.
Tens de gostar de ti antes de gostar de mim.
Não sou igual a ti.
Não poderás me atingir, sem começares por ti mesmo.

Ele:

E gostas de mim como de ti?

Ela:

Gosto de ti como de mim.
Sou perfeita para teu corpo.
Sou perfeita para teu amor.
Assim és perfeito para mim.
O amor não conhece imperfeições ou faltas.
Mesmo que me esqueças, continuarei te amando.

Ele:

Não poderei te esquecer.
Não se esquece uma mulher,
principalmente se ela nos ama.

Ela:

E sabes que te amo?

Ele:

Sei.

Ela:

E o que é o amor para ti?

Ele:

Teu sorriso.

Ela:

Meu sorriso é meu amor por ti?

Ele:

Sem teu sorriso, eu não saberia que me amas.

Ela:

Posso não sorrir e te amar.

Ele:

Me amas mais quando sorris.

Ela:

Sorrio quando me alegras.
Mesmo quase taciturno, o olhar perdido.
Amo-te por não compreender-te por inteiro.
Amo-te, porque quero compreender-te.

Ele:

E o que há em mim para compreender além do que já sabes?

Ela:

Nada. Apenas quero ter certeza do que sei.

Ele:

Que certeza, que sequer eu tenho?

Ela:

Certeza alguma me dará o mesmo que me dás.

Ele:

E o que eu te dou?

Ela:

O mesmo que eu te dou.

Ele:

Assim mesmo não sei o que é.

Ela:

Não sabes me dizer mais do que teu nome.

Ele:

Meu nome não sou eu.
Sou mais do que um nome.
E ao mesmo tempo muito menos.
Sou uma sombra que te ama.
Tua própria sombra. Teu suspiro.
Teu infinito desdobrar-se.
Tua infinitude largada ao vento.
Tua candura despida.
Sou muito menos do que és
e muito mais do que sei que sou.

Ela:

Minha infinitude não cabe em ti.
Mal eu caibo em mim.
O que busco de infinito em ti
é o que me falta ver em mim.
O que me falta é o que me dás.
E nada me falta.
Mesmo assim, eu busco.

Ele:

Buscas-me, porque eu também te busco.
Por isso, nos encontramos.
Deparamos com nossas infinitas sedes.
Diante de um poço que não seca.
Uma fonte redescoberta.

Ela:

Teu riso é minha fonte.
E tuas palavras, minha sede saciada.

Ele:

O que me sacia é ver te saciares em mim.

Ela:

Tu te sacias em mim como eu em ti.
Nossas fomes se completam e se extinguem.
Minha certeza se alimenta desses presságios.
De que te sacio como me sacio em ti.

Ele:

Nada é maior que tua fome por mim.
Nem a minha por ti.

Ela:

Se me completas, não te pergunto o que te falta.
Mas, se te completo, por que ainda sentes fome?

Ele:

Nenhuma fome é inteiramente saciada.
O fim de uma é o início de outra.
Outra busca totalmente nova.

Ela:

Buscas mais do que podes encontrar.

Ele:

Busco apenas o que preciso.

Ela:

Não precisamos um do outro?

Ele:

Precisamos saber um do outro.

Ela:

O que sei é quase indecifrável.

Ele:

Nada pode ser decifrado a sós.
É preciso que decifremos juntos.

Ela:

Se não sei o que decifrar, como decifraremos juntos?

Ele:

É o que resta descobrir: o que decifrar para poder decifrá-lo.

Ela:

Queremos saber o que sentimos.

Ele:

Eu apenas sinto.
Tu queres entender o que sentes.

Ela:

Eu falo sobre o que sinto.
Mas também sinto sem conseguir dizê-lo.

Ele:

Não busco dizer aquilo que só sei sentir.

Ela:

Se sinto, tenho de dizê-lo.
Se não o digo, não sei o que é.

Ele:

Saber sentir é outra forma de decifrar sem dizer.

Ela:

Tua forma de compreender sem conhecer tudo a fundo,
tua decifração muda do universo,
teu misterioso canto sobre as coisas como são,
os mistérios da alma são apenas subterfúgios.

Ele:

Labirintos em que me perco.

Ela:

Jardins com torres de alabastro...
Monumentos ao teu olhar.

Ele:

…mas se é só teu olhar o que busco?

Ela:

Meu olhar indiviso.

Ele:

O silêncio antes de tua fala.
O prenúncio da tempestade.
Em mim, todos os signos se rompem.
Eu apenas sei te amar.
Menos que isso, deixo de existir.

Ela:

Mesmo quando amamos,
nos sentimos terrivelmente sós.
A solidão é um nascimento.
Nascemos sós e não sabemos para quê.
Passamos a existir aos nos sentirmos amados
e a falta desse amor nos aniquila.

Ele:

Entre os momentos de amor,
oscilamos entre a sombra e a luz.
Existo quando me vês.
Se não te vejo, deixo de existir.
A morte é uma longa ausência.

Ela:

Se não estás comigo, me sinto só.
Mas se morresses, estarias o tempo todo comigo.
Imagino-te ausente, mas permanentemente vivo.

Ele:

És irrepetível.
Sequer teu menor gesto se repete.
Observo-te, dia a dia, e não me canso de olhar-te.
Sempre te renovas.
Cada beijo teu tem outro gosto.
Cada toque, um novo frescor.
Nada que faço se repete e me sinto novo para ti.
Renasço contigo a cada amanhecer.

Ela:

Amanheço e meu pensamento desperta.
Teu rosto adormecido repousa ao meu lado.
Não ouso beijá-lo.

Ele:

A paixão se constrói no beijo.
A cada beijo, nos conhecemos mais profundamente.
Não preciso explicar-me,
pois, a cada vez que me beijas, me conheces melhor.

Ela:

Tudo que quero é prolongar os momentos em que estamos juntos.
Tudo passa tão rápido, que logo me esqueço do que fizemos.
Quando tento lembrar, algo me escapa.
Por isso, guardo os detalhes de tudo para me lembrar depois.
Não quero deixar nada passar.
Na memória está a eternidade.
O que eu sei é para sempre.

Ele:

O que se prolonga é nosso desejo.
Estendemos ao máximo a nossa perenidade
cada vez que nos multiplicamos em outros momentos
que escolhemos para estarmos juntos.
Essa multiplicidade está na escolha
que fazemos em vivê-los juntos.

Ela:

Por mais que nos contemplemos,
esquecemos quem somos
por querer ser quem o outro é.
Queremos imergir nesse lago profundo
que é o outro e despertamos já cansados.
Por mais que nademos até o outro,
sempre haverá uma margem à qual não chegamos.
Perdemos nossa identidade ao buscarmos o outro
e ao nos lembrar quem somos,
perdemos o outro de vista.
Tentamos revê-lo e não o encontramos mais.
Passamos muito tempo
até rever o mesmo olhar
que percebemos uma única vez.

Ele:

Despimo-nos lentamente ao nos deixar conhecer.
Tua carne não é mais tua, mas minha, por dá-la a mim.
O que vês em mim não é mais nada senão tu mesma.
Sou o que tu és para ti.

Ela:

Apenas te vês em mim para que te vejas.
Por mais que não pense em me ver em ti,
aprendo a olhar para mim.
Toda luta é inglória e, esta, a mais inglória de todas.
Tentar ser para o outro o que o outro é para nós,
quando somos absolutamente iguais.
E naquilo que não nos reconhecemos,
desconhecemos em nós mesmos.

Ele:

Nesta manhã, somos órfãos novamente.
Buscamos a serenidade das coisas onde não há serenidade.
Queremos infligir ao outro o silêncio que não permitimos a nós mesmos.
Duvidamos sempre do amor do outro, porque amamos menos do que esperamos amar.
Eu, para ti, sou quem amas, mas não te amo menos por duvidar.
Minha dúvida está em como fazes isso, e isto é o que procuro em teu olhar.

Ela:

Me sentes e sabes minha vida de cor.
Eu mesma já me esqueci o que fui e mal me lembro quem quero ser.
Sei apenas quem estou sendo, sem começo, meio ou fim,
e a cada dia tropeço no que restou de mim.

Ele:

Sei que não bastam mentiras nem meias-verdades,
mas o que realmente conta é o que descobrimos não ser segredo.
Todos sabem o que é uma vida fácil:
difícil é acertar em cheio quando não se sabe.
Fiz de tudo um pouco e o que não fiz, quis fazer.
Restou somente a história do que fui sem ter sido.

Ela:

Sempre vejo tua docilidade pronta ao espanto.

Ele:

São graves as mãos que toco – vivem a folhear mistérios.
Eis a voz, sem seu canto: ergue-se outra vez diante de mim
– eu, sem mais esperar; tu, a seguir teu rumo.
Se vives, és para mim só um.
Se vivo, sou para ti o que sou.

Ela:

Nada muda em teu olhar dúbio
– revisitas a manhã, diuturno –
gesto envolto em bruma.

Ele:

Te revisito por teu beijo.
Partes, porque estás no princípio de tudo.
Vestir, nódoa a nódoa, o precipício –
oráculo, ermida de teu célere apelo.

Ela:

Tremor: tua vida passa.
O tempo basta e sempre o revivemos.

Ele:

Há muito anunciavam nosso encontro.
Por sobre as sebes, nossos olhares,
canções ao amanhecer, noites a vagar, obscuras.

Ela:

Muito foi dito das horas, nos silêncios sepultos,
a chama vivendo de se extinguir,
a lã das coisas a estender-se entre nós.

Ele:

Muito foi deixado para trás, fomes e esperas inaudíveis,
segredando um  vento de esporas,
inadiável musgo a cobrir as pedras,
sustentando um momento único de caminhos,
vozes, veios, vinhas, o destino das flores, laços e memórias largadas.
Viemos ao dia que pressentimos, entre nozes, uvas, cascas de pão partido,
minhas mãos e as tuas, enlaçadas.

Ela:

Se amo, não minto.
Lava-me a fartura de meu amor ritmado.
Eis-me, próxima de teu corpo,
calêndula curando a pele,
visgo de flores,
mandrágoras,
o relevo de tuas mãos
sobre minhas ancas.
Posso partir-me ao meio,
indecisa, vida,
a glosa de tua fala.
Eis-me, porque me tens.

Ele:

Nada te fende.
Fui, ontem, a palavra,
rasos silêncios repletos de falas,
ecos, murmúrios, visitações, acaso,
sombras todas, enormidades.
Em ti, a vida flui, néctar espesso,
hóstias de luz sobre a tarde marrom.
Te vertes.
Em mim, sou tudo que és.

Ela:

Meu silêncio,
tua palavra.
Meu beijo,
tua casa.
Vasos raros partidos e espalhados.
O que somos?
Vivos abraços
livros
cascas
mãos e falas.
Enredo.
Escorre o rio.
A vida arde.
A palavra é tudo.

Ele:

Que é teu corpo
senão a vinha,
teu cálice a entornar a terra.
Que temos de lonjuras,
ermos paraísos de água,
falsos lemes em quilhas fendidas.
Que temos de breve
que não se consome,
fábula a recitar seu nome,
a vida enorme a passar.

Ela:

De sândalo é tua túnica,
lúdica tempestade ao começo.
Verto, quanto é chuva,
nuvem, meu elemento,
o teu intenso intento.
Nada mais te dissipa.

Ele:

Se me visitas,
povoas de carne
a centelha úmida,
favo sobre tua boca silente,
gesto de penumbra e ócio.
Vagas, em ondas
que alisam o pelo,
voz que preenche vácuos,
teu olho a riscar o vidro.
Me dás sempre
a certeza de não estares
senão à espera.

Ela:

Sem manhãs, amanhecemos sóbrios.
Sobre nós, os lagos se arremetem,
planuras refletidas, imensuráveis.
Frutos de luz,
branca lua.
Auroras, brumas,
manhãs imensas.
O silêncio cala a noite estrelada.
Nenhum vestígio de palavra.
Tua vastidão é absurda.
Te colhi a concha das mãos ao ouvido.
A voz naufraga.

Ele:

Dá-me o desejo de possuí-los,
belos como seixos,
lisos como âmbar,
tardes ao relento e vozes sussurradas.
Deixa-me devolver teus pertences,
vidas em relevo,
fomes viscerais,
longas noites sem estrelas.

Ela:

Vivemos à sombra de coisas esquecidas.
Quanto mais nos pomos a esperá-las,
mais nos vemos sem elas.
Antes havia um silêncio
que eu não conhecia.
Um murmurar,
lento girar de olhos,
visões de cânticos,
vozes dentro de uma circunferência
de fogo.
Havia um silêncio tocado
pela espera,
um templo encerrado em pedra,
um oco não preenchido
por pétalas,
atento a um marulho de conchas,
vento por entre folhas.

Ele:

Erguemos um jardim
para a última paisagem
que nos perpetue
além de nós.

Ela:

Em que paisagem submerjo
de esperas consentidas?
Tudo resta após passarmos lentamente.
Nada deixamos por terminar.
Teu gesto se completa
mesmo interrompido.
A permanência de tua mão.
Todas as coisas são eternas.
Até o que se perdeu.

Ele:

Nada é teu.
Ergues um abismo de nadas.
Vives, sôfrego, partindo sempre,
voz emudecida de adeuses.
Virão todos sobre teu corpo mudado,
flores tímidas, noites roucas.
Seremos qualquer coisa além dos píncaros,
luzes foscas a beber as horas.
Vertes no silêncio a paisagem,
horizonte vivo a habitar os olhos.
Livros, páginas surdas,
deslizam versos sem espelhos.
Teu breve gesto ecoa:
a noite se constrói sozinha,
sem palavras.

Ela:

Perdemo-nos na noite
e dela surgimos outros:
sua fonte murmurando em mim
como uma outra linfa
obscura e essencial;
eu, em alguma memória
de seu obscuro imanente;
cada um parte da escura
e radiante madrugada.

Ele:

Prometemos palavras
e devolvemos esperas.
Xícaras de chá,
doces tâmaras entre os dedos.
Mordemos a polpa e o caroço.
A vida ainda pulsa na língua
a extensão de um afago.
Te digo o que ouves de mim.
O que tenho,
acasos libertos de teu aceno.

Ela:

Que perda de vida viver somente uma vez.
A vida se duplica ao acrescentarmos mais sentido a ela.
Vivemos a profundidade do mar num coração de vidro.
Cavalgue o deserto de algas e plante sua alma junto ao rio.
Vivemos uma perda de tempo,
onde a vida busca o reflexo sobre a miragem.
Uma face vê a outra face.
Uma vida contém a outra vida.
E o mar cobre a profundeza da alma, irreduzida.

Ele:

Tempo úmido de pétalas,
flores púbicas,
céus da boca.
O que entorna é água do vaso
de hortênsias,
vida colhida das ranhuras
ocres de um caule
que se alonga.
Verter
verde
vertigem.
Voragem.

Ela:

Ouvi-lo,
acrobata da palavra,
Gaudí erguido
no gesto de Gades.
A sombra desliza
sob seus pés,
a textura móvel
de seu passo
imenso:
o poeta à mercê
do canto –
vermelhidão poente
de fugidios
lastros.

Ele:

Nem tudo que passa se esquece,
raiz fincada no seio,
chão de heras pretendidas,
vertida mão sem medida.
Nem tudo o que resta é bem-vindo,
pranto de tantas horas
a estremecer folhas com seu vento
com o passado ainda presente.
Nem um nem outro esquecemos,
o que fica e o que passa:
o ventre da memória tece vãos
por onde desliza a história.
Eis que se assomam os entes
que amamos e não nos abandonam.
Estes, sim, são eternos
por amar a nós e nós a eles.

Ela:

Olhos movem-se
pupilas veem-me
espraiam-me
em corpo etéreo
asas imaginárias
nódulos carnívoros
luz derretida
ambíguos dentes.

Ele:

Dissipa-me, larva de luz.
Colhe teus molhes,
as folhas vivas,
as odes bárbaras,
os decanos santos
de tua abóbada.
Por onde for,
desces o abismo,
o talhe encurvado,
oscilante,
vívido palmo calcado
sobre a hora.
Ergue teu rosto sobre mim.
Rios vertem de tua boca,
erupções de águas revoltas,
vendavais e torrentes.
Retomo em ti minha fúria.
Bebes em mim o néctar e a flor.

Ela:

Em minha lentidão
construí-te inteiro
fome esquecida em mim
regaço de ervas
caules perfumados
exatidão onisciente.
Pousas por sobre tardes etéreas
gamos sacrificados
orlas de teus cabelos
vicissitude de tua altura eólica
rochas bipartidas
arco sobre o mar
latitude extrema, nascedouros
cantos hiperbólicos de tua voz imorredoura.

Ele:

Ritualizo
além da esfinge
oculta de teu rosto
em brasa
as hordas de cavalos selvagens
a galopar oceanos
distâncias vívidas
entre teus olhos escuros
grãos de mostarda
a deslizar da árvore
nascida entre os invernos.

Ela:

Tua passagem de patas
de ferro infernizam planícies,
enlouquecem tântalos, catalisam cepas,
vinhas de ira e pranto,
cálices de horas embebidas,
lenços encharcados de suor,
tua febre revolta, mãos e acalanto,
vento, jasmins espúrios,
vegetação do caos,
sofrimentos côncavos embalam
o sono, vertigem, casca de árvores sagradas,
nativo odor, celebração de folhas,
leitos brancos, fontes que jorram noites,
estrelas e luas e o marmóreo perfil do ontem.

Ele:

Torno-me real como um mito.
Entranhado ser em tua cosmogonia.
Diluo-me em terra.
Farto-me de pão e sementes.
Torno-me grão.
Deixo um resto de mim, uma epifania.
Moldo meu ser.
Fundo-me à minha alma antiga.
Vivo no limite de tudo:
sem minha própria imagem.

Ela:

Perfume de flores imaginárias,
flores lidas, paisagens descritas,
olhos buscam imagens, fôlego para ir mais fundo,
oceanos superpostos em latifúndios de verbos
(orar a Deus e à palavra):
renascemos a cada poema.

Ele:

Imagino-te
nascente, polvo iridescente
flâmula, lânguido,
mescla de suor e sol
liquefeito.

Ela:

Imagino-te, fábulo,
manto, força de braços
a nado,
circunspeto,
perfil perscrutado
– transcendido.

Ele:

Teces a paz,
a planura altiva de teu cenho,
luz de jade em teu ombro.
Amo em ti o afago,
a noz, teu âmago,
casta entranha demasiada.
Vês o oblíquo olhar
de teu sonho,
veste diuturna e branda.
Talha em pedra fria,
esculpe a forma, o canto:
despe outra vez o dia.

Ela:

A manhã,
o dia extasiado.
Começo,
tempo estranho.
Vinhas, tuas mãos
ainda lentas sobre a tarde.
Verdor, palavra esguia,
a derramar-se
sobre horas secas.
Nítida paisagem:
tua vida basta, teu olhar aquoso
ao largo de tudo.

Ele:

Vivessem refletidos
a imagem e o rosto,
um único ser
amalgamado,
traço, rumor de espinhos,
pássaros novos, tantos.
Vivêssemos, árvores
copadas, pouso,
a sombra extensa
sem limite.
Éramos exaustos
e vãos,
ciclos, cânticos,
multidões.
Areia sob conchas,
indivisa,
a verter o mar a todo custo.

Ela:

Teço, como Penélope,
o manto de Helena
para chorar a perda
de Páris.
Teço o linho do leito
para cobrir meu amado.
Teço, as mãos ágeis
– o tempo não detém o teu tear.
Choro, os dedos frágeis,
os olhos débeis,
a vida à espera.
Teço, amorosa tecelã,
a trama de meus dias.

Ele:

Inaudível,
antecipado gesto.
Eis-me silente, força, frêmito,
vazante anterior à palavra,
o mar derramado.
A um passo de mim
não o ouço –
não o pronuncio.
Erguem-se a miragem
e seus olhos, turbulência
esquiva e vária,
pressentimento de aragens,
desertos cheios de nadas.
Não. Me basto ainda.
Por isso, prossigo.
Por mais que me esqueça.

Ela:

Vivem silêncios
sobre as encostas.
Silêncios
onde há sombras
passos sobre passos
já dados.
Retrocede o olhar.
A planície te assombra.
Cúmplice,
toma o cálice que bebeste.
Se partiu, não existia.
Celebra outra vez teu encanto.
A fome e a ira.
Não seguirás só.
Outro rosto te contempla.
Escultor e escultura,
moldas o gesto e sentimento.
Vive o silêncio a sua lonjura.
O estar consigo, o vigor, a hora.
Nada te detém.
Segue vastidão afora.
Teu olho agudo sobre a escarpa.
Te precipitas.
A vida não é mais o que era.

Ele:

Teu olhar segue o último aceno,
íntimo, ínfimo, novo.
Mesclam-se as dores de todas as horas,
movidas pelo caos do absurdo,
mãos que esperam,
bocas que calam.
O pensamento
imerso em névoas longínquas
abre-se com a lentidão dos pastos,
distâncias inatingíveis,
brandura impossível
dos mais estranhos dias.

Ela:

Constrói com a lentidão dos corais
o teu arrecife de espáduas.
Não hesites sobre o mar imenso.
Formula a palavra vertida em teu ouvido.
Dá tempo para que aprendas.
Tudo chega à sua hora.
Sem pressa.
Eis teu destino.
O que te espera dorme um sono sem mistério.
Ergue a pedra, tua palavra.
Lapida o que encontrar.
Cada uma te abre pequenos atalhos.
Ausculta o poema, teu mapa diante de ti.
Deixa-te impregnar.
Espera.
Tudo caminha
em seu passo de eternidade.

Ele:

Naturezas
não escolhem motivos,
apenas são.
Vão-se assim,
vivos cravos carmim
amálgama
lavra
verve
tudo palavra.
Meus motivos
não trafegam auroras
boreais
causais
cinéreas.
As manhãs mais antigas
são límpidos olhos
que choram.

Ela:

Vida e seus largos campos,
ermos, trilhas revisitadas,
vãos fundos e parcos silêncios,
planícies e espraiados montes,
toda luz liberta de seu desígnio,
alcova, meticulosa fala,
berços, mãos e candelabros,
obras, livros abertos,
tessituras frágeis em remotos lenços,
invisíveis bordados, a alma despida,
visões de sonhos, paraísos ocultos,
nuvens distendidas, algum horizonte,
cumes, charcos, montanhas longínquas,
horas neutras, rostos oblongos,
vertidos cálices, vistosa chama,
laços, lagos, alguma fímbria,
madrugada extensa,
círculos na água, passos longos,
ombro, sombra, nascedouro.

Ele:

Nada como conhecer a própria dor,
inalienável sabedoria,
maré vazante de palavra.
Nada como conhecer a própria sorte,
verso imantado,
coisa esférica por fora,
coisa etérea por dentro.

Ela:

Tua pele recende a orvalho
pluma destacada de teu ombro
mão fatigada
voo alçado em despedida.
Teu corpo exala o frescor
não pressentido
aura circunscrevendo o oceano
imerso em abismo
ressurgido, vivo, outro.
Tua voz habita cavernas antigas
ecos inversos de uma planura exígua
fóssil atento, marmóreo fosso
nuvem espargida em cinza.

Ele:

Teu ventre abriga o labirinto de Minos
Ariadne a desfiar sozinha
a perpetuidade mínima
de um lance de flechas.
Arco irredutível
tua mão esculpida em âmbar
lágrima cristalizada em dia
translúcido ser impermanente
verdor primevo
alvura extensa de teu próprio olho.
Teu olhar atinge a luz e a refrata
cristalino brilho
lacerada esperada.

Ela:

Tu és um e um outro.
És amado e perfeito,
adorável com teu perfil de sombra,
em qualquer dia de teu desfolhar lento,
contido em um gesto eterno.

Ele:

Tua ausência é uma presença desencarnada.
Um oco onde antes havia algo
uma memória deixada ao relento
passo não dado
um silêncio
tempo abandonado
modo de adormecer à sombra
um segredo
a vida toda à espera
lampejos a esmo
fundo falso de gaveta
onde se escondem inutilidades.

Ela:

Não me escolherás.
Na tua estreiteza tola
ouvirás outro canto
verás outro amanhecer
e tudo estará consumado.
Tua palavra será a minha
e eu esperarei outro
instante de penumbra
para meu nascimento.
Tuas coisas serão belas
depois de iniciadas
e tudo será maior
que teu coração santo.
Serei efêmera
e a suavidade das esperas
superará o destino.
Estarei à porta de uma idade
que não retorna
e quando o tempo voltar
já teremos partido.
Nada nos deterá
nem o que pensamos.

Ele:

Precisarei de murmúrios
esta estância pressentida e breve
– olvidos de tua passagem.
Tudo nos abandona
ao abandonarmos
o que somos.
Seremos sempre terríveis
diante da dúvida.

Ela:

Serão motivos
o que perdemos
essa última dor conhecida
tanto tempo depois.
Recomeçamos, resgatando
o que fizemos de nós mesmos
a face rubra
a face pálida
o cálice entornado
resquício resignado.
Outra aurora,
manhã ressurgida
apesar de
se
embora
toda vez seja o mesmo dia
sendo outro.

Ele:

Desço as escadas
para abrir a porta
do hoje –
aviso que já passou
a hora e a luz
se acendem somente
mais tarde.
É possível que o dia
acabe e eu não chegue
a começá-lo.

Ela:

Humano é não saber direito
por onde começa o engano
essa luta sem trégua
descambo
falsa lira
vã simetria.
Não saber o que fazer
de si quando não se espera
mais nada.
Que sofrimento estranho
saber que não se sabe.
A alma ecoa no vazio
a chuva se abate sobre a laje
e a noite não finda
(é sempre noite quando desesperamos).
O corpo se dobra ao vento
e outra fria manhã se anuncia.

Ele:

Continuamos a dizer o que sempre dissemos.
O que não tem começo nem fim.
Sou para ti o que sempre fui desde o início.
E, o que esqueço, sempre me lembro ao te ver novamente.

Ela:

Embora eu não seja senão a mesma que conheces,
me vejo diferente do que fui.
E tu, o mesmo que sempre amei, sempre novo ao meu olhar.
Amo-te como se nunca tivesse amado.

Ele:

Amar prescinde de conhecimento.
Mesmo sem me conhecer como hoje, já me amavas.
E sempre te conheci antes de encontrar-te.
Amar é um estado de eternidade.

Ela:

Em que tempo que não havia nos conhecemos?
Quando soube de ti antes de ver-te?
Em mim, já existias, como um pressentimento.
E tudo sobre ti me povoava.
Estavas à minha volta, como um dia que nos cerca.
Antes de ver-te, eu te via sem meus olhos.

Ele:

Minhas palavras não me bastam. As tuas me seduzem.
Sou eu quem escuta quando quero dizer-te tudo que ouço de ti.
Me precedes em meu pensamento.
Me dizes o que quero ouvir e o que quero que ouças.
Tomas emprestado o que tenho a dizer para me dizer que me amas.

Ela:

Digo o que quero que me digas também.
Tudo o que sinto é criado por ti.
Sem ti, nada teria a dizer ou sentir.
Sentiria, estando só.
E me sentindo só,
deixaria de amar-te, por não existires para mim.

Ele:

Existo para que existas.
Eu mesmo começo e termino em ti.
Todas as coisas só existem para que possas vivê-las.
Eu não vivo sem outro motivo senão tua vida.

Ela:

Minha vida se estende até a tua.
Eu me ergo para alcançar-te.
Todos os meus gestos te buscam.
Minha adoração é ter-te mesmo calado.
E te ouço sem palavras.

Ele:

Tudo que temos é o mais difícil de ter.
Vivemos a véspera da distância.
Hoje estamos aqui e amanhã não mais.
Despedimo-nos todos os dias
para reiniciar em outro momento a nossa vida.

Ela:

Recomeçamos todas as vezes que nos reencontramos.
As partidas fazem morrer em nós o que fomos e, ao voltar,
renascemos um para o outro, como se não tivéssemos existido,
embora permaneça viva a memória do que fomos.
Reinauguramos todos os dias outro alento.

Ele:

Ao me aproximar de teus pesares
levo meu olhar à tua boca
e o sopro traz o tempo à tua altura
o dorso de tua mão
o movimento de teu lábio.

Ela:

Me vês, porque me pressentes sem dizer nada.
Teu mistério é um oco ao avesso
em tua ausência.

Ele:

Mordes o fruto que colheste,
o mesmo que me dás.
E a árvore perdeu os pomos e suas folhas.
Vives no limite da aurora.
Sempre o indizível e invisível momento
quando faltas ao instante em que me visitas.

Ela:

Teu odor vivo
lembram oásis
nascidos subitamente
de longos e revoltos desertos.

Ele:

Tua voz é um riacho
murmurando nascedouros ermos
obscuros ventres
vertendo eternas manhãs.

Ela:

Serão tuas falas
o musgo da pedra
a diuturna febre de estar desperto
lentas mãos
pequenos desmaios
póstumos de ti mesmo
harpa solitária e triste
reflexos na água
turva língua
a verter a lágrima no sorriso
invertido.

Ele:

Restam vozes, rasgos
restam sonhos, nesgas.

Ela:

Manhã de fogo
e lástima
verdor de ócios
e bruma
pele manchada
e estreita
febre e relento
veio e refúgio.

Ele:

O verso vertical cai sobre ti
(abre lagos entre montanhas à distância).
Nada será teu depois de hoje.
Nada esperas de mim ou de ti,
por sermos a mesma vaga,
o mesmo lastro ao mar.

Ela:

És todo belo
terno sangue
pele amanhecida
nódoa
mantra
voo de teu lábio
arrefecido.

Ele:

Me acostumo à tua ausência
como à dor.
Um mar de conchas
se instala onde habito
sem sargaços
sem paisagem marinha
que o vislumbre.

Ela:

Me acomodo à falta
como um oco.
Largas sendas
amplos desertos
um nada uníssono e bravio
sem oásis
sem vento
que o devasse.

Ele:

Me moldo ao silêncio
como uma nave.
Janelas, pórticos, enseadas,
narizes aduncos,
rostos marcados de passado
sem dia
sem noite
que os aliviem.

Ela:

Se florestas houve,
se o mar não há
e o visgo das sementes
se interrompe,
nêsperas, tâmaras, olivas,
orquídeas falhas deitam-se
entre teus lábios
e despertam.

Rio de Janeiro/Teresópolis/Boulder/Paraty
novembro 2000 – janeiro 2008